Juliano Aparecido Pinto

 

INTRODUÇÃO

 

Sobreleva-se cada vez mais uma Filosofia menos pretensa, ou melhor, menos sistematizada e mais aberta ao diferente.[1] Nosso intento neste ensaio filosófico, não quer ser mais do que insinuações. Até porque, pensamos nós, não são as respostas prontas e acabadas que movem a investigação filosófica. São os problemas, os buracos, as crises, que caracterizam a natureza do pensamento filosófico. Se por um lado, vemos as filosofias, as quais buscam sistematizar o total da existência humana entrar em declínio. Por outro lado, vemos emergir no horizonte da reflexão filosófica, a possibilidade de se pensar o outro, o diferente sem conceitualizá-lo.

Não conceitualizar significa não aprisionar, assim nosso discurso será sempre aberto. Há, tão somente, interpretações sem que nenhuma seja tomada como verdade absoluta. Na melhor das hipóteses, chamaríamos este discurso de discurso insinuante. Pois não visa convencer, visto que não há verdades absolutas. Sabemos que, com a determinação de uma verdade. Como sendo esta absoluta, nasce um impasse, ou aquilo que podemos chamar de violência do saber. Ora, ao assumir dogmaticamente, uma postura de pensamento, dito como verdade. Tudo aquilo que não se adequar aos critérios determinados, para que seja tomado como verdadeiro, deve ser combatido, pois trata-se de um discurso falso.

Assim, o diferente, o “outro”, deve necessariamente, ser extirpado, eis a morte do outro. O outro só será aceito se caso entrar nas condições de mesmidade, identificação, ou melhor, somente será aceito o que entrar nas estruturas racionais que determinam o que deve ser pensado. No entanto, se o outro se adequar aos critérios, apontados, para ser digno de ser pensado filosoficamente, então ele deixará de ser outro, diferente e se tornará o “mesmo”, dominado pelo ideal de identificação. Sintetizando, o outro seria dissolvido no eu. Poder-se-ia nos questionar: ora, ao dizer que não há verdades absolutas, esta já não seria uma? Ao que diríamos, a ambiguidade é uma peculiar característica pós-moderna. Deste modo, ressaltamos: tudo é interpretação, tudo é provocação.

Assim acabamos por adentrar no problema central, a nosso ver, da modernidade, quando esta limita os contornos da razão, obrigando-a à dizer tudo. Ou seja, assumiu-se a razão como único viés pelo qual a existência foi interpretada. Ressaltamos que nosso ensaio filosófico, se anuncia como sendo de grande importância. Isto se dá, devido à seriedade e honestidade intelectual com que a questão chave é pensada. É sério e honesto na medida em dialogaremos com outras reflexões filosóficas, no intuito de colher elementos que dizem respeito sobre o nosso problema em questão, a saber, “o problema do outro”.

Pensar o outro significa estabelecer uma crítica ao pensamento do idêntico, do si mesmo. Significa colocar as pretensões da razão epistemológica em questão, apontando o ato de conceituação como um problema, pois limita, orienta e determina as condições para que algo seja digno de ser pensado. Nosso objetivo principal, neste ensaio, visa pensar a possibilidade do outro se tornar um problema para reflexão filosófica. Mostraremos e justificaremos como a estrutura do pensamento racionalista tendeu à exclusão do outro. Para que este se torne um problema em sua singularidade, deve ser necessário haver uma mudança radical no modo de se filosofar. Não visamos propor uma solução, mas queremos pensar se o outro foi tomado como problema. Se a resposta for sim, então investigaremos como isso foi possível. Se a resposta for não, investigaremos a partir da mesma questão. Isto irá nortear os rumos da nossa investigação.

Para tanto, dividimos nosso trabalho em alguns tópicos, procurando em qual momento, histórico filosófico, o outro se tornou um problema. Duas questões serão a espinha dorsal do presente ensaio. A primeira: quem é o outro? A segunda: é possível pensar o outro a partir do cogito cartesiano? Assim, faremos uma breve retomada histórica do problema do outro, caso haja, chegando ao cogito. Nosso trabalho traz em seu corpo, as explicações necessárias para que sejam compreendidos os rumos delineados para estabelecer o outro como problema. Advertimos que não queremos chegar a uma resposta, pois o nosso intuito será problematizar, o que é próprio de um trabalho filosófico.

 

 

Impostação Histórica e problematização

 

Diante dos vários problemas que movem a investigação filosófica, há um que surge com toda a sua agudeza assustadora. Tal problemática surge perante nós exigindo que todo pensamento filosófico Ocidental, desde o seu arvorar-se rumo ao horizonte da verdade, da eternidade, do mundo das essências, seja rigorosamente repensado. Repensar significa, na melhor das hipóteses, reorientar, repropor outras possibilidades. Em uma palavra, quer dizer criticar. Este verbo, neste nosso ensaio filosófico, quer salientar o pensar filosófico como constante movimento provocativo.[2]

Qual seria esta problemática que se interpõe diante de nós com tanta exigência? Dito de forma sintética e fundamental, o que se impõe cada vez mais como um tema digno de ser pensado seria “o problema filosófico do outro”. Este se anuncia de grande envergadura, pois perpassa os temas clássicos da Filosofia.[3] Em outras palavras, significa pensar a possibilidade do próprio pensamento filosófico. Ora, como é sabido, a experiência fundamental que determinará o surgimento da reflexão filosófica Ocidental, surge da descoberta grega do logos. Este é de grande importância para a Filosofia, pois significa palavra, razão.[4]

No entanto, não basta salientar que o logos, grosso modo, é palavra. É preciso, antes de tudo, demonstrar a natureza da Filosofia, para que se possa ressaltar ou estabelecer uma estreita relação entre o logos, palavra e Filosofia. Assim poderemos, ainda que timidamente, ver o problema do outro emergir como problema filosófico. A Filosofia trás em si o significado que nos interessa neste esboço de sua natureza. A palavra “Filosofia” é originária do Grego, sendo assim o composto unificado de duas palavras, a saber; Philos – Sophía.[5] De modo geral, podemos dizer que a Filosofia é amor e busca pelo saber, ou amor à sabedoria.[6] Não é possível, no presente ensaio, aprofundar as sutis nuanças do termo em questão.

Advertimos que a Filosofia não busca qualquer saber, mas tem por objeto o “ser enquanto ser”.[7] Para tal atividade da busca pelo saber, a Filosofia enquanto ciência rigorosamente amparada pelos conceitos será regida pelo logos, o qual terá seus princípios próprios.[8] Interessa-nos, porém, salientar apenas um de seus princípios, a saber; o princípio de não contradição. A nosso ver, este princípio resume bem o projeto geral e específico da Filosofia enquanto tradição Metafísica.

A esta altura de nossa pesquisa, podemos dizer que a natureza da Filosofia é buscar, com regras precisas, a verdade ou a totalidade do real. Será impensável, ou melhor, inaceitável um discurso que traga em seu bojo qualquer possibilidade de autocontradição. O que for diferente e que escapar às determinações do logos, ou da razão, ou do discurso unificador deverá ser combatido, pois não se trata de um saber filosófico, mas de uma opinião qualquer, δóχα. 

A relação entre logos, palavra e Filosofia se articula da seguinte maneira: a Filosofia é a ciência que exprime sua atividade especulativa, regida pela razão decodificada no discurso linguisticamente. Afirma-nos Ibraim Vitor: “A própria razão, principalmente graças ao princípio de não contradição, se encarrega desta função ordenadora. A razão não suporta a diferença e somente compreende o que, de algum modo, for unificado na identidade”.[9] Em outras palavras, a racionalidade e a linguagem no âmbito filosófico devem obedecer aos princípios lógicos e seguros determinados pela razão.

A razão tem suas regras para invalidar ou garantir a veracidade de um dado discurso filosófico. Isto se dá devido à sua intrínseca característica de clareza e precisão. Tal tipo de razão irá nortear os rumos de toda reflexão que se pretenda filosófica, isto implica dizer que diante da multiplicidade, da pluralidade, da diferença, do não idêntico, devem prevalecer a ideia de unidade, de cálculo, de logicidade, de identidade. Enfim, de verdade eterna. Assim expressa Ibraim Vitor: “Todavia a atuação do logos deve ser rigidamente coordenada para que, com clareza e precisão, a espantosa e aparente desordem da multiplicidade encontre o repouso na unidade”.[10]

A razão filosófica nos termos elucidados, não passa de estratégias metafísicas. Estas, segundo nos parecem, já seriam um discurso excludente do outro. Considerando este, a princípio, como o diferente. No entanto, não será somente neste termo que visamos colocar a problemática do outro. A Filosofia, ao assumir o logos como orientador do seu movimento reflexivo, terá duas funções inseparáveis.

Diante da pluralidade e disparidade do que pode ser percebido pelos sentidos, o espírito filosófico corre à conceitualizar, pois isto é próprio da razão que não suporta a pluralidade. Entendemos o ato de conceitualizar no sentido de reunir as experiências dentro de um conceito, que por sua vez estará dentro dos parâmetros da racionalidade elucidada nos parágrafos anteriores. Aqui as duas funções do logos enquanto regente da reflexão filosófica será reunir e dizer. Portanto, não basta identificar, nomear ou conceituar somente. É preciso dizer, expressar em forma de discurso. Afirma e acrescenta Ibraim Vitor: “Mas dupla é a tarefa de quem realmente busca sair da ignorância: atingir o fundamento de tudo aquilo que é e conseguir expor linguisticamente tal fundamento. Esta dupla atividade exprime bem o que a tradição metafísica grega entende por logos na concomitância de seu duplo sentido: racionalidade e discurso”.[11]

Ao que parece, a atividade filosófica não é um monólogo, mas um diálogo. Ora, se o logos é um reunir que é um dizer, então não é uma atividade solipsista “solus ipse”, pois se é um dizer, perguntamos: dizer para quem? Ora, eis um problema que nos amedronta a todos devido à sua agudeza: seria possível a comunicação das consciências?[12] Este, segundo nos parece, não era um problema para a Filosofia Ocidental nascente,[13] pois esta estava circunscrita ao problema consciência-mundo. Afirma padre Vaz: “Ora, é sabido como o problema clássico da Filosofia Ocidental é o problema da relação consciência-mundo”.[14]

Não obstante a preocupação filosófica no seu erigir inicial seja a relação consciência-mundo, ou consciência-cósmos, ou ainda consciência-ideia.[15] A Filosofia, se assim podemos dizer, enquanto religião do logos não encontrará sua expressividade nos tipos de relações apontados acima. Ora, se o logos é palavra,[16] e se a Filosofia encontrou nele seu impulso investigador e as regras para o seu movimento enquanto reflexão rigorosa, então esta só se realizará no diálogo crítico. É significativo ainda, salientar que o diálogo somente se efetiva na relação homem-homem.[17]

No referente à Filosofia nos termos apontados no parágrafo anterior, nos garante padre Vaz: “Na verdade, a mais alta realização desta Filosofia, ou seja, o platonismo, encontrou seu método e sua expressão precisamente no diálogo.”[18] Assim, vemos no incidir da reflexão que se pretenda filosófica, a qual parte da descoberta grega do logos, o surgimento da temática do “outro”. Na verdade o outro se torna um problema na medida em que percebemos que o pensamento filosófico, que é direcionado pelo logos, se articula e se efetiva na dupla função: racionalidade (conceitualização) e discurssividade (diálogo). Ao que podemos reafirmar, a característica inerente ao logos é reunir e dizer.[19]

Ao que parece, ainda que timidamente, o problema filosófico do outro está posto. Em síntese diríamos: a estratégia do logos consiste em unificar e identificar. Esse no que refere à pluralidade, este ao que é diferente. Entendemos por diferente aquilo que advém ao pensamento, mas que não está regido pelas regras do logos.[20] O outro se torna necessário, ao passo que percebemos que o conhecimento filosófico nasce do diálogo crítico e precisa ser expressado linguisticamente. Mas o outro já não seria algo que por natureza escapa à unificação e identificação; funções estas próprias da razão? E já que ele escapa, como pensá-lo? Diante de tais problemas embaraçosos, que nos obscurecem a razão. Consideraremos o outro, como sendo aquele que possibilita o diálogo tornando possível o progresso do pensamento filosófico.

Seria possível afirmar, que a necessidade do diálogo para o desenvolvimento do pensamento filosófico trás o “outro” para a discussão? Ao que parece segundo nossa reflexão até aqui, o outro é trazido para o pensamento. Poderíamos fazer uma questão mais precisa; a saber: quem diante do logos, nos termos elucidados anteriormente, teria a primazia o eu ou o outro? Ora, se o logos tem regras precisas para alcançar o imutável, o idêntico, o eterno.[21] Então nem o eu terá primazia e nem o outro, mas a ideia. Aqui o problema do outro é reposto com toda a sua agudeza, pois “a posição do absoluto absorve o outro na idéia”.[22]

Eis, pois, o paradoxo a que nos encontramos enredados. Embora o logos seja palavra e torne o progresso filosófico possível a partir do diálogo, o outro não ocupa lugar de destaque, mas ao contrário, ele é anulado. Garante-nos padre Vaz: ”A experiência mais fundamental do encontro com o outro (…) é a experiência da palavra comunicada, do diálogo. Ora, o logos é palavra. E há um paradoxo profundo no fato de que a Filosofia do logos tenha sido uma anulação do outro.” [23]

Ao que parece, o “outro” que pensamos vir despontar no horizonte da reflexão filosófica, permanece mergulhado nas sombras da História.[24] É verdade que o diálogo precisa do outro para se efetivar, no entanto quem terá a primazia será a ideia. Considerando que os grandes pilares da Filosofia Antiga são Sócrates, Platão e Aristóteles, diríamos que é bem significativo que o problema do outro não se coloque. De modo que podemos afirmar, nos diálogos, de modo geral, socrático-platônicos os interlocutores se anulam em nome da ideia.

Sintéticamente, no referente às ideias expostas acima, nos garante padre Vaz:

 

Mas o que é significativo no diálogo platônico, como encontro das almas e sua salvação pela Filosofia – essa a essência da mensagem socrática –, é a submissão dos interlocutores ao logos, de tal sorte que a salvação oferecida pela Filosofia reside, finalmente, no consentimento à idéia, que o logos descobre através do diálogo. Assim, o diálogo platônico leva os interlocutores a se reconhecerem, definitivamente, somente no plano em que o outro, como eu mesmo, converge na impessoalidade do logos.[25]

 

No que diz respeito a Aristóteles, o outro também não se fará problema digno de reflexão filosófica. Embora Aristóteles tenha escrito a Ética a Nicômaco, obra esta que refletirá sobre a felicidade, a qual nasce da ação virtuosa, o “outro” não se fará temática.[26] Também é verdade que tal filósofo tenha pensado sobre a amizade, nem mesmo assim o outro se torna interpelador do espírito filosófico. Afirma padre Vaz: “(…) no logos da contemplação, os amigos se contemplam como um espelho. A amizade aristotélica é essencialmente aristocrática: ainda aqui, portanto, o perfil do outro é absorvido pelo esplendor do logos”.[27]

Em suma, pensar a problemática do outro no cenário filosófico Antigo não é, a nosso ver, uma tarefa possível, pois polarizado pela ideia do Absoluto o logos logrou à perseguição da ideia, da imutabilidade. Enfim, foi dado uma primazia absoluta ao céu das essências.[28] O que torna impossível pensar o encontro do outro que seria um mero acontecimento contingente, meramente humano, se pensado a partir da realidade da ideia.

É bem significativo o que afirma padre Vaz, no que diz respeito às ideias expostas acima:

 

A dimensão do outro, emergindo como rigorosamente singular na contingência do encontro, é envolvida desde logo na depreciação do contingente que está presente na inspiração da Filosofia do logos. Apenas a forma merece elevar-se à esfera de contemplação (teoria),[29] que é o ato filosófico por excelência. O evento ( é, antes de mais nada, este acontecimento radicalmente humano, que é o encontro do outro). Fica entregue à ponderação e ao cálculo da prudência (…). A Luz da idéia envolve tão somente as realidades eternas.[30]

 

No período Medieval, de modo geral, vemos levantar-se o problema do outro. Este surge como sendo o próximo. Em face da frieza e calculabilidade do logos grego, emerge o amor-dom, proposto pela figura de Jesus. Quando falamos de amor-dom, queremos ressaltar que aqui não prevalece a dialética, a qual enquanto serva do logos visa alcançar a verdade. E, diga-se de passagem, que ao contrário da impessoalidade insurgida aos interlocutores nos diálogos socrático-platônicos, Jesus propõe o reconhecimento e o cuidado para com o próximo. Este é, a grosso modo, aquele a quem o eu dispensa seu amor sem esperar absolutamente nada em troca, pois se trata de um amor-dom. (Ágape). Ao contrário do Absoluto na compreensão antiga, o Deus cristão não absorve em si o outro, mas propõe como exigência primeira que o outro, o próximo, seja reconhecido na sua singularidade e amado.[31]

Diante do encontro da cultura antiga com o pensamento cristão, o outro é introduzido como tema digno de reflexão. Esta visa gerar um movimento interno no eu, que chamamos de compaixão, para com o próximo. Salienta padre Vaz:

 

Em face da densidade do destino do logos eleva-se, como uma radical novidade, a doutrina cristã do amor (ágape) [32] e a revelação do próximo (…). O próximo é termo do amor de Deus, e seu amor torna-se a exigência primeira da mensagem da boa nova, do evangelho.[33] Dessa sorte, o tema do outro é introduzido na cultura antiga sob a forma de uma posição absoluta de reconhecimento e amor, dentro do movimento mesmo de aceitação da palavra de Deus (fé) e de vida (caridade) que dela nasce.[34]

 

LIMITAÇÃO DA REFLEXÃO PROPOSTA

 

Se de um lado, o problema do outro não se faz interpelação filosófica, por outro, na doutrina cristã o outro aparece como sendo a figura do próximo. No entanto, percebemos um limite nesta solução para o problema do outro. Considerá-lo como próximo, proposta esta do cristianismo, só o é possível mediante a fé no Deus cristão. Assim, a justificativa para que o outro se torne temática será teológica, pois exige a fé. Nosso intento, porém, é apontar o problema do outro filosoficamente. Isto implica dizer que buscamos justificativas racionais para que o outro apareça como problema.

No entanto, isto não quer dizer que não levaremos em consideração a proposta da reflexão cristã, pois ao que percebemos o outro só se tornou tema digno de ser pensado a partir do âmbito cristão. Salientamos que não nos interessa as questões concernentes à fé. Como por exemplo: Deus existe? Ou ainda, Deus vai condenar ao inferno quem não amar o próximo? Estas questões não serão tomadas como problema filosófico para o presente ensaio. Interessa-nos, entretanto, a temática do outro. A qual pensamos nós, já ocupa um lugar de grande dificuldade, pois a Filosofia até o presente tem sido um pensamento voltado para o “mesmo”. Para o idêntico, noções estas sustentadas na ideia de identidade.

Ao que percebemos, pensar o “lugar” do outro no pensamento filosófico é uma tarefa de grande envergadura. Deste modo, se faz conveniente uma necessária limitação da nossa reflexão. Limitar não no sentido de empobrecer nosso ensaio, mas de direcioná-lo. Neste sentido, iremos pensar a partir de Descartes, limitando um pouco mais queremos refletir sobre o cogito. A partir das obras Discurso do método e Meditações. Desta monta, queremos impor um problema dominador para o racionalismo moderno. Ao pensar e justificar o cogito cartesiano perguntamos: onde está o outro? A problemática do outro se faz presente diante do cogito? Estas serão as questões que irão nortear nossa reflexão.

Para tanto, será necessário percorrer o pensamento de Descartes desde a sua hiperbolização da dúvida à descoberta do cogito. Sabemos da grandiosidade reflexiva do pensador em questão, por isso não pretendemos esgotar todas as possibilidades de reflexões possíveis, no que refere ao cogito, mas pretendemos, tão somente, pensar se o outro, o qual só apareceu no pensamento cristão, ainda é possível de se fazer questão ou temática perante o indubitável e irrefutável cogito cartesiano.

 

PROJETO FILOSÓFICO DE DESCARTES

 

“Clareza e distinção”.[35] Estas duas palavras, nos seus respectivos significados, resumem bem o projeto geral e específico de toda investigação filosófica de Descartes, na sua busca por fundamentos para todas as ciências. Clareza e distinção são duas características inerentes à razão matemática.[36] Assim a razão acaba por anunciar-se como ratio sistematizadora, que tudo calcula, orienta e determina.

O fulgor de tal ratio procurará extirpar todo mito e toda ilusão, no que diz respeito à religião. Tal tentativa encontrará sua expressão paradigmática em um período histórico bem definido, a saber: no Iluminismo. Deve-se perceber que o objetivo de tal época, grosso modo, será o progresso científico. Para tanto, faz-se mister repropor outros fundamentos para que o objetivo científico seja alcançado.   

A Modernidade viu ruir todos os fundamentos que sustentavam o pensamento do período que a antecedera.[37] Logo há a necessidade de se encontrar outros fundamentos que possibilitem uma reconfiguração filosófica do mundo, do homem, da ciência e até mesmo da atividade que se pretenda filosófica. Tal pretensão em erigir novos fundamentos, que fossem mais seguros, será assumido de forma radical por Descartes.

De modo sintético nos assegura o próprio Descartes:

 

Há já algum tempo eu me apercebi de que, desde meus primeiros anos, recebera muitas falsas opiniões como verdadeiras, e de que aquilo que depois eu fundei em princípios tão mal assegurados não podia ser senão mui duvidoso e incerto; de modo que me era necessário tentar seriamente, em minha vida, desfazer-me de todas as opiniões a que até então dera crédito, e começar tudo novamente desde os fundamentos, se quisesse estabelecer algo de firme e de constante nas ciências.[38]

 

Para tais estratégias na busca por fundamentos, não basta identificar os problemas, é preciso de métodos bem precisos para que se possa conduzir bem a razão. Deste modo, não se enveredará por caminhos incertos.

Assim expressa o filósofo Francês, no que refere à necessidade de se ter um método:

“Não quis de modo algum começar rejeitando inteiramente qualquer das opiniões que porventura se insinuaram outrora em minha confiança, sem que aí fossem introduzidas pela razão, antes de despender bastante tempo em elaborar o projeto da obra que ia empreender, e em procurar o verdadeiro método para chegar ao conhecimento de todas as coisas de que meu espírito fosse capaz.[39]

 

Em suma, o projeto filosófico de Descartes consiste em estabelecer um método, que seja bem preciso e rigoroso. O objetivo de tal método será encontrar, se possível, alguma verdade que possa ser tomada como fundamento para todas as ciências. Rene Descartes é o filósofo com o qual a Modernidade terá seu inicio. Portanto, ele colocará, a princípio, toda a tradição de pensamento filosófico que o antecedera em questão.

 

O MÉTODO

 

O método ocupa lugar de destaque no pensamento de Descartes, pois será a partir do mesmo que ele encontrará uma verdade para fundamentar o conhecimento e a realidade. Como foi visto, no tópico anterior, o método se faz necessário porque nosso filósofo quer desfazer-se de todas as certezas que tinha até então, pois as considerava duvidosas e incertas. Neste sentido, como foi salientado, ele quer romper com toda tradição. Mas por que ele quer esta ruptura? Pode-se dizer que ele quer romper-se dela, porque a mesma não estava articulada no plano da clareza e da distinção.

O que será preciso para se chegar a algo que seja claro e distinto? Ora, será necessário adequar todo pensamento aos parâmetros do método estabelecido por Descartes. Assim, segundo parece, se chegará à verdade indubitável da realidade. Portanto, é preciso conduzir a razão para que a verdade se torne presente, tirando de nós toda obscuridade. Afirma Descartes: “(…) e, destarte, que a diversidade de nossas opiniões não provém do fato de serem uns mais racionais do que outros, mas somente de conduzirmos nossos pensamentos por vias diversas e não considerarmos as mesmas coisas. Pois não é suficiente ter o espírito bom, o principal é aplicá-lo bem”.[40]

As regras que compõe o método são quatro, a saber: primeira; não acatar nada como verdadeiro, que não seja claro e distinto. Em outras palavras, acatar somente o que não apresentar a menor possibilidade de dúvida. Garante-nos Descartes: “(…) jamais acolher alguma coisa como verdadeira que eu não conhecesse evidentemente como tal (…) nada incluir em meus juízos que não se apresentasse tão claro e tão distintamente a meu espírito, que não tivesse nenhuma ocasião de pô-lo em dúvida”.[41]

Segunda regra: dividir as dificuldades para melhor resolvê-las. Dito de outro modo, dividir tudo o que for complexo em quantas partes for possível. Isto possibilitará uma análise pormenorizada de cada problema. Afirma-nos Descartes: “(…) dividir cada uma das dificuldades que eu examinasse em tantas parcelas quantas possíveis e quantas necessárias fossem para melhor resolvê-las”.[42]

Terceira regra: partir dos problemas mais simples para os mais complexos. Isto quer dizer, que devemos partir dos objetos mais fáceis de conhecer e somente assim ir para os objetos mais difíceis. Em outras palavras, subir como que por degraus do fácil para o difícil. Expressa o filósofo de nosso estudo: “(…) conduzir por ordem meus pensamentos, começando pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer, para subir, pouco a pouco, como por degraus, até o conhecimento dos mais compostos, e supondo mesmo uma ordem entre os que não precedem naturalmente uns aos outros”.[43]

Quarta regra: fazer enumeração e revisão. Salienta-nos Descartes: “E o último, o de fazer em toda parte enumerações tão completas e revisões tão gerais, que eu tivesse a certeza de nada omitir”.[44] Estas quatro regras, as quais compõem o método são matemáticas. O que significa dizer que o mundo, visto por meio do método cartesiano, será uma realidade decodificada matematicamente. Portanto, aqui não há lugar para indeterminações. Tendo esboçado o método, agora trata-se de aplicá-lo.

 

 

A DÚVIDA COMO SUSPENSÃO DO JUÍZO

 

Advertimos que a dúvida, tomada nos moldes cartesiano, não significará assumir uma postura dogmática. Em outras palavras, a dúvida não será um fim, mas um método, um caminho para, se possível, encontrar alguma verdade. Deste modo, podemos dizer que a dúvida será assumir uma postura de quem procura uma justificativa última para o que acredita, pensamos nós. Assim, Descartes acaba por reinaugurar o sentido da palavra “cético”. Esta no seu sentido original significa investigador,[45] ou busca constantemente pelo saber e não como tem sido pensado, ou seja, uma postura de quem faz da dúvida um início e um fim em si mesma. Ressalta Descartes: “Não que imitasse, para tanto, os céticos, que duvidam apenas por duvidar e afetam ser sempre irresolutos: pois, ao contrário, todo o meu intuito tendia tão-somente a me certificar e remover a terra movediça e a areia, para encontrar a rocha ou a argila”.[46]

Descartes fará uso da dúvida, como é possível perceber, partindo da primeira regra do método. Portanto, tudo aquilo do qual houver a menor possibilidade de dúvida será, de forma radical, tomado como falso. Diante de tal estratégia, para se buscar algo de verdadeiro perguntamos: o que poderá ser tomado como duvidoso e consequentemente falso? Ora, tudo aquilo que não for certo e indubitável. Sendo assim, será analisado o conhecimento advindo pelos sentidos, as matemáticas, Deus, a realidade. Enfim, todas as coisas serão postas em dúvida.[47] Devido ao nosso objetivo, o qual consiste, a princípio,[48] chegar ao cogito, vamos perpassar todo este caminho da dúvida metódica.[49]

O filósofo das Meditações, ao analisar o que recebeu por meio dos sentidos, percebeu que estes algumas vezes o enganara, logo não poderia confiar nos mesmos. Assim salienta Descartes: “Tudo o que recebi, até presentemente, como o mais verdadeiro e seguro, aprendi-o dos sentidos ou pelos sentidos: ora, experimentei algumas vezes que esses sentidos eram enganosos, e é de prudência nunca se fiar inteiramente em quem já nos enganou uma vez”.[50]

Todavia, anunciar que os sentidos são enganosos não basta. Então Descartes aprofunda sua dúvida. Agora ele parte para o argumento do sonho. Pode ser que estejamos dormindo e sonhando com uma realidade corpórea que não passa de ilusão. Em outras palavras, por vezes pensamos estar diante da realidade, do corpo em absoluta vigília, no entanto estamos dormindo. Ora, já que não conseguimos distinguir quando estamos dormindo ou acordados, então tomaremos toda realidade corpórea como falsa. De modo sintético elucida Descartes: “Suponhamos, pois, agora, que estamos adormecidos e que todas essas particularidades, a saber, que abrimos os olhos, que mexemos a cabeça, que estendemos as mãos, e coisas semelhantes, não passam de falsas ilusões”.[51]

Nem o argumento dos sentidos, nem o do sonho colocam em questão a Matemática ou Deus. Ora, mesmo dormindo dois mais dois será sempre quatro. Ao que parece, a Matemática é uma verdade indubitável, pois perante os sentidos que podem enganar, e o sonho que também pode enganar-nos no referente ao real. A Matemática ou as coisas corpóreas parecem resistir à dúvida. Ao que afirma o filósofo: “(…) quer eu esteja acordado, quer esteja dormindo, dois mais três formarão sempre o número cinco e o quadrado nunca terá mais do que quatro lados; e não parece possível que verdades tão patentes possam ser suspeitas de alguma falsidade ou incerteza”.[52]

Eis, pois, levantar-se perante nós uma questão esmagadora. Pode ser que Deus, o qual tudo pode, nos engane sempre. “Ora, quem poderá assegurar que esse Deus não tenha feito com que não haja nenhuma terra, nenhum céu, nenhum corpo extenso, nenhuma figura, nenhuma grandeza, nenhum lugar e que, não obstante, eu tenha o sentimento de todas essas coisas (…)?” [53]

Ao que parece se existir algum Deus e ele tudo puder, então poderá nos enganar a respeito de tudo, inclusive sobre a Matemática. Embora haja alguns problemas, os quais não são objetos deste nosso ensaio, a saber, Descartes coloca Deus em questão? Considerando que Deus é bom, verdadeiro e soberano, como o próprio Descartes afirma.[54] Perguntamos: Descartes coloca Deus em questão, assim como fez com as outras realidades? Ou ele apenas supõe que há não um Deus verdadeiro, mas um gênio maligno? Se assim o for, então ele não conseguiu colocar e justificar a dúvida no referente ao objeto Deus, logo nosso filósofo não conseguiu colocar tudo em questão.

No entanto, este não é o nosso problema, o poderá ser em outras futuras pesquisas, no momento basta essa insinuação. Seguindo o nosso curso, ao supor que Deus ou um gênio maligno nos engana, Descartes chega ao grau máximo de sua dúvida. A isto ele afirma: “(…) de todas as opiniões que recebi outrora em minha crença como verdadeiras, não há nenhuma da qual não possa duvidar atualmente (…)”.[55]

A hipótese cartesiana do gênio maligno nos leva à hiperbolização da dúvida. O que não significa que não se deva prosseguir na investigação filosófica. Como já foi salientado, a dúvida cartesiana é metódica. Deste modo, podemos afirmar que o grau máximo alcançado pela dúvida, consiste em uma suspensão do juízo, provisoriamente. Quanto à hipótese do gênio maligno, salienta Descartes: “Suporei, pois, que há não um verdadeiro Deus, mas certo gênio maligno, não menos ardiloso e enganador do que poderoso, que empregou toda a sua indústria em enganar-me”.[56]

Ao final deste tópico, podemos dizer que alcançamos nosso objetivo. O qual era perpassar todo caminho da dúvida até chegar à suspensão do juízo. Em suma, o filósofo da Meditações, a princípio, coloca tudo em dúvida, a saber, o conhecimento advindo dos sentidos, a Matemática, pois supõe que Deus é enganador, podendo enganá-lo a respeito dos objetos matemáticos. Descartes também supõe que pode estar dormindo e sonhando que tem um corpo e que está em determinado lugar.

 

O COGITO

 

Interessa-nos neste tópico, refletir sobre como Descartes chegou à indubitável verdade do cogito. No entanto, percebemos uma profunda necessidade de refletir sobre alguns desdobramentos desta verdade, pois como se verá, somente assim nos será possível colocar o outro como temática. Todo o nosso movimento reflexivo até o presente trás em seu bojo, uma profunda inquietação filosófica de colocarmos o outro como problema filosófico. Conseguiremos? Contrariamente à razão matemática cartesiana que tudo calcula e predetermina, nós não sabemos.

Descartes precisa de um ponto que seja indubitável, para que lhe sirva como fundamento na busca de qualquer verdade caso esta exista. Ele precisa e quer encontrar um ponto que seja fixo, a partir do qual será fundamentado todo conhecimento científico. Ressalta o filósofo das Meditações: “Arquimedes, para tirar o globo terrestre de seu lugar e transportá-lo para outra parte, não pedia nada mais exceto um ponto que fosse fixo e seguro. Assim, terei o direito de conceber altas esperanças, se for bastante feliz para encontrar somente uma coisa que seja certa e indubitável”.[57]

Descartes, ao chegar ao extremo da dúvida, percebe que embora os sentidos o enganem, a Matemática seja falsa, pois o gênio maligno o engana a respeito dela, visto que ele é enganador. Ou até mesmo a realidade possa não existir, pois ele pode estar sonhando. De uma coisa ele não poderia duvidar, ou seja, ele estava pensando. E caso ele fosse enganado a respeito de sua existência, para tal ele tinha que existir. Portanto, Descartes chega à sua primeira verdade: Penso, logo existo.

De modo a sintetizar o parágrafo anterior, afirma-nos ele: “(…) cumpria necessariamente que eu, que pensava, fosse alguma coisa. E, notando que esta verdade: eu penso, logo existo, era tão firme e tão certa que todas as mais extravagantes suposições dos céticos não seriam capazes de abalar, julguei que podia aceitá-la, sem escrúpulo, como o primeiro princípio da Filosofia que procurava”.[58] Este é o cogito cartesiano, pensamos que é a partir desta verdade que Descartes irá buscar outras verdades que sejam claras e distintas. Nosso filósofo não pode ficar preso ao solipsismo do cogito, pois assim não será possível fazer ciência. Portanto, é preciso analisar se há alguma outra verdade. Neste sentido, será analisado se há algum Deus e se ele é enganador. Uma vez que, todas as outras possíveis verdades dependem disso.

Cumpre-nos relembrar, que depois de termos chegado ao cogito, ergo sum, precisamos pensar, ainda que de modo geral, sem uma análise pormenorizada, como Descartes justifica a existência de Deus e consequentemente a verdade das coisas materiais. Isso se faz necessário para percebermos se é justificável o movimento reflexível que vai do cogito ao mundo. E assim, podermos colocar o outro como um problema filosófico.

Para analisar se há algum Deus, o critério utilizado será o princípio de causalidade.[59] Em suma, este significa que o finito não pode criar o infinito. Neste sentido, Descartes percebe que há nele também a ideia de Deus. E ao analisá-la a partir dela mesma, percebe que ela é infinita, soberana, perfeita, eterna, onipotente e criadora de todas as coisas.[60] Partindo do princípio de causalidade, chega-se à conclusão de que o cogito não poderia criar a ideia de Deus, pois o cogito é finito, portanto Deus existe.[61] E esta ideia está inata ao cogito, visto que este não poderia criá-la ou inventá-la. Deus também não é enganador, uma vez que ele é perfeito e o engano é uma imperfeição.

Partindo do pressuposto de que Deus não é enganador, então ele garante a verdade das coisas materiais visto que, a nossa razão as percebem. Assim, seguindo os ditames da razão amparados pelo método, e tendo Deus como garantia, chegaremos à verdade.[62] Em suma, Deus garante a verdade que a nossa razão percebe no mundo, logo as coisas matérias existem. Assegura-nos o filósofo das Meditações: “(…) pois a razão não nos dita que tudo quanto vemos ou imaginamos, assim, seja verdadeiro, mas nos dita realmente que todas as nossas idéias ou noções devem ter algum fundamento de verdade; pois não seria possível que Deus, que é todo perfeito e verídico, as houvesse posto em nós sem isso”.[63]

Nosso objetivo neste tópico foi demonstrar como Descartes chegou à verdade clara e distinta do cogito também demonstramos alguns dos desdobramentos desta primeira verdade, os quais foram justificar a existência de Deus e como consequência encontrarmos a justificativa para a existência das coisas materiais. Deste modo, fizemos um arco reflexivo que vai do cogito ao mundo. Seria justificável a passagem do cogito ao mundo? Esta questão será o trampolim para o próximo tópico.

 

 

NA INCIDÊNCIA DO COGITO. “A PROBLEMÁTICA DO OUTRO?”

 

Este tópico verte na melhor das hipóteses, em uma tentativa nossa de colocar o outro como problema filosófico. Colocar o outro como sendo digno de ser pensado, não é e nem será uma tarefa de cunho fácil. Entretanto, nós nos desafiamos à tal tentativa. Deste modo, existem algumas questões precisas, que podem nos ajudar, tais como: seria possível reconhecer no outro o mesmo estatuto ontológico de “sujeito”, conferido ao si mesmo do cogito? Seria possível pensar na existência de dois cogitos, os quais se reconheceriam como tal? Ou ainda, é possível pensar em reciprocidade perante o cogito? São questões, a nosso ver, esmagadoras e de difícil solução. No entanto, serão elas que irão nortear a reflexão deste tópico.

O raciocínio de Descartes para sustentar o cogito é, sem sombra de dúvida, irrefutável.[64] Deste modo, o eu pensante existe. A justificativa para a sustentação do cogito é uma justificativa última, pois não é necessário recorrer à outra verdade para declarar o cogito como uma verdade indubitável. Assim, o cogito acaba por ficar preso ao solipsismo. Ora, ele não precisa nem do outro, se é que este existe, nem de Deus para se justiçar.

O primeiro passo reflexivo, como vimos no tópico anterior, é justificável. Ao ponto de podermos considerá-lo uma certeza indubitável ou clara e distinta. Estamos nos referindo ao cogito. No entanto, o segundo movimento reflexivo não nos parece tão seguro, filosoficamente pensando, quanto ao primeiro. Estamos nos referindo a Deus e ao mundo. O “eu”, para ser enganado a respeito de sua existência precisa necessariamente existir. Agora, Deus e o mundo, não nos parecem tão seguro assim. É verdade que Descartes precisa sair do solipsismo do cogito para fazer ciência, mas daí não se segue que Deus e o mundo existam.

“Penso, logo existo”. Esta célebre afirmação cartesiana nos revela a autonomia do cogito. Este não precisa sair de si para encontrar outra realidade que não esteja nele mesmo. Ora, para garantir que Deus existe, por exemplo, Descartes analisa o próprio cogito. Será neste que terá a ideia de infinito, soberania, perfeição, eternidade e onipotência. Afirmamos que de Deus mesmo não tem nada. Ora, Este transcende em absoluto a racionalidade e o discurso humano,[65] logo o Deus de Descartes é um Deus criado pela razão matemática. Esta por sua vez, se encontra na estrutura ontológica do cogito. Quando utilizamos “estrutura ontológica do cogito”, é para ressaltar que ele surgiu de princípios matemáticos.

Ao que parece o cogito não sai de si, portanto fica patente a impossibilidade de se colocar o outro como um problema filosófico perante essa verdade clara e evidente. O único movimento que o cogito faz é sobre si mesmo no seu auto-reconhecimento. De fato, acabamos por perceber a nossa incapacidade de colocar o outro como um problema para a reflexão, que se pretenda filosófica.

Ao contrário de se tornar o outro um problema, a reflexão cartesiana nos mostra que “o sujeito do racionalismo habita a solidão da idéia”.[66] Desta monta, o sistema cartesiano se efetiva frente à morte do outro. Afirma-nos padre Vaz: “O racionalismo de inspiração cartesiana risca, portanto, de sua perspectiva a existência do outro (…) Descartes é, por excelência, o gênio solitário, e a única abertura do cogito é para a idéia do perfeito, para o Deus que é garantia das verdades eternas”.[67]

Nosso objetivo neste tópico foi o de pensar, a partir das questões do primeiro parágrafo, o problema do outro. Entretanto, para que tal discussão fosse possível era necessário que o outro se fizesse problema. Como vimos, o outro foi anulado, riscado da possibilidade de nos inquietar perante a clarividência do cogito. Assim, as nossas questões, no que refere ao outro, se dissolveram diante do sistema cartesiano. O outro permanecerá nas sombras da história e do pensamento filosófico. Ao que podemos afirmar: na incidência do cogito, a morte do outro.

 

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

Tendo perpassado todo este caminho, em busca de colocar o “outro” como temática. Podemos dizer que é impossível pensar o outro, diante da estrutura esquemática filosófica, assumida pelo Ocidente desde sua origem grega. Como vimos, o logos sobre o qual a Filosofia viu seu erigir, já o era excludente do outro. Ora, “reunir” é conceituar, o que por sua vez exclui o que não entrar nos parâmetros para ser conceituado. “Dizer”, parece exigir a presença e o consequente reconhecimento do outro. No entanto, vimos o paradoxo do logos. Se ele é palavra, reunir que é um dizer, como pode excluir o outro si mesmo? Ora, dando primazia para a ideia.

No que refere a Descartes, o problema do outro também não se coloca, ao contrário, o outro é riscado, anulado perante a verdade indubitável do cogito. Este se fecha em si mesmo, assim ele acaba por se tornar o auge do solipsismo racionalista. Como foi dito na introdução, nosso objetivo era responder[68] quem é o outro e se era possível pensá-lo diante do cogito. Assim, fracassamos nas duas tentativas. Não conseguimos responder, filosoficamente, quem é o outro. Também, devido ao solipsismo do cogito, não conseguimos colocar o outro como um problema.

Aqui insistimos em deixar o problema, que nos ocupou nesta pesquisa. Quem é o outro? Um outro eu? Ou ainda, um eu estranho? Seria possível conceituá-lo? Mas, conceituar já não é um modo de dissolver o outro no eu? O modo de nos portarmos perante o outro, na tentativa de responder quem ele é, seria a melhor alternativa? Ora, perguntar o que é, a nosso ver, parece exigir que o outro seja Algo estático, universal, constante. Não seria melhor considerar o outro como sendo diferente? Ou considerá-lo como sendo um fenômeno, que se dá somente no seu aparecer original, semelhante ao Ser em Heidegger, o qual aparece e desaparece tornando impossível sua conceituação, pois nos escapa o tempo todo?

Pensamos que o ato de conceituar a realidade é uma ação violenta, pois tenta colocar a realidade em conceitos, essa é uma atividade inerente à razão. Pensamos que o conceito não diz a realidade, pois ao colocá-la em um conceito, tentando expressar a totalidade do real, tudo o que for diferença será desconsiderado. A racionalidade trás em seu bojo a pretensão de dizer o real de forma totalizante. Portanto, a razão só conhece aquilo que ela estabelece segundo o seu projeto. Deste modo, afirmamos que a racionalidade não seria a melhor alternativa para se pensar o outro. O discurso, que se estrutura a partir de tal tipo de razão será pautado na dialética, com um objetivo bem definido: reunir o diferente na unidade e convencer, a partir dos princípios lógicos. Assim, a nossa proposta seria assumir um discurso insinuante, uma vez que, este não visa convencer, mas apenas insinuar. Talvez, a partir deste outro tipo de discurso seria possível dizer algo sobre o outro.